quarta-feira, 12 de maio de 2010

Estudantes alimentam população carenciada
Coimbra Projecto solidário pode ajudar a acabar com os maus-tratos a sem-abrigo nas festas académicas


"Tanta Shakira!". Eis o desabafo entusiasmado de um homem, quando as portas da carrinha se abrem e saltam, de dentro, mulheres jovens e bonitas.

Algumas são estudantes universitárias. Enchem o largo nocturno da Baixa de Coimbra, onde se concentram bocas ansiosas, porque estamos na última quinta-feira do mês, altura em que a Direção-Geral da Associação Académica de Coimbra (DG/AAC) distribui a "Refeição (de)Vida" pela população mais carenciada, em parceria com a Associação Integrar.

Há pratos quentes - sopa e arroz com frango, confeccionados pela cantina dos Serviços de Acção Social da Universidade de Coimbra (SASUC) -, para cerca de 30 pessoas, nem todas sem- -abrigo. A maioria tem tecto, mas vive em situação de grande pobreza. Como C., de 40 anos, celebrizado por, numa noite, ter comido oito sopas. "Sou doidinho por sopa!", justifica, de taça na mão. O dinheiro permite-lhe pagar o quarto onde vive, sozinho, e "uns iogurtes". Vale-lhe a Cozinha Económica.

Violência nas festas académicas

O projecto "Refeição (de)Vida" nasceu da vontade da DG/AAC anterior, e a actual não quis deixá--lo cair. Susana Marçal, coordenadora da Equipa de Apoio Social Directo, bem como do Centro de Acolhimento e Inserção Social da Integrar, lembra-se de ter ficado "muito surpreendida" com o contacto dos estudantes, no ano passado. Viu logo ali uma oportunidade para mudar mentalidades, corrigir comportamentos. Fala, essencialmente, dos maus-tratos de que são alvo os sem-abrigo, por parte de universitários, durante as festas académicas.

"É uma forma de mostrar aos estudantes que estas pessoas já tiveram uma vida normal e não devem ser desprezadas nem maltratadas. Eles acabam por levar consigo muito daquilo que vêem na rua. Muitos não têm noção de que, quando um sem-abrigo vai para um centro, tem de reaprender tudo: desde a higiene pessoal, a como estar sentado a uma mesa, ao porquê de ter de cumprir horários", explica Susana Marçal.

Acredita que os membros da equipa da DG/AAC passam a palavra aos outros estudantes, no sentido de combater comportamentos nefastos para quem está na rua. A simples oferta de álcool, por exemplo. "Ensinamos-lhes que, na Latada, não são amigos dos sem-abrigos por lhes dar cerveja. Ao fazê-lo, estão a alimentar um vício, a estragar o trabalho das instituições", clarifica a responsável da Integrar, no parque de estacionamento da Avenida Emídio Navarro, em Coimbra, onde se servem arrumadores de carros. Um deles, A., tem 50 anos, sorridente, é imigrante, dorme num edifício abandonado e tece rasgados elogios à qualidade da comida. "É tudo bom!".

A meta da DG/AAC, agora, é tornar as rondas quinzenais. Segundo a coordenadora do pelouro de Intervenção Cívica, Patrícia Damas, isso só não foi possível, ainda, por falta de apoios fixos. Nunca se falhou uma "Refeição (de)Vida", até porque os SASUC e os núcleos da AAC ajudam, mas há carência de patrocínios. "Vamos tentar estabelecer mais contactos, por exemplo, com indústrias de carne, às quais três ou quatro quilos a menos não fazem diferença", concretiza.

Pedir comida carregado de livros

Patrícia Damas é um dos dois elementos fixos da DG/AAC, nestas rondas. O terceiro vai variando, para que mais gente possa conhecer o outro lado da noite. Para ela, estudante de Psicologia, com 21 anos, não é novidade sair a distribuir sopa, arroz, café, bolos e salgados (cortesia de algumas pastelarias da cidade) por sem-abrigo, toxicodependentes, prostitutas, imigrantes ou, simplesmente, pobres. Já tinha feito voluntariado antes e aprendido que há vidas desprovidas de tons rosa. "Agora, relativizo muitas das dificuldades que possa ter".

Ainda assim, por vezes, Patrícia é surpreendida. "Há uns tempos, um senhor veio buscar comida com um saco cheio de livros. Já tinha uma certa idade, o discurso era cuidado... Foi das situações que mais me sensibilizaram. Mas nenhuma das histórias que ouvimos é feliz, todas nos fazem pensar um pouco", conta a futura psicóloga.

Inês Simões, técnica de serviço social da Integrar, confirma que, por vezes, surgem "pessoas com frequência universitária" a pedir ajuda. E dá razão a Patrícia Damas, quando esta diz: "Pode acontecer a qualquer um".

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